terça-feira, 6 de outubro de 2015

Das coisas que aprendo com meu filho

Então chega um dia que a gente percebe que tem muito mais a aprender com as crianças do que a ensinar. Já ouvi isso milhares de vezes, mas só venho entendendo agora o que quer dizer.

Tenho pensado que há três formas de exercer a alteridade. A mais comum, e infelizmente aquela da qual mais me valho, é a que despreza a realidade do outro e busca-se por explicações rasas e fáceis para justificar a realidade daquele que não sou eu. O que importa pro outro pode não importar para mim e ficamos por aí, sem qualquer pretensão de compreensão, incapaz de ver algo além de mim. Exemplo corriqueiro disso é querer explicar a situação alheia através de argumentos meritocráticos, em que se prega ser necessário apenas esforço para se atingir um objetivo, sem levar em conta demais fatores envolvidos na questão.

Também é possível se relacionar exercendo a empatia. E não acredito que isso seja um sentimento espontâneo, pelo contrário, vejo a empatia como um exercício que requer prática e racionalidade. Além disso, vejo a empatia como a tentativa de se colocar no lugar do outro. EU me coloco no lugar do outro, tento ver a realidade usando seus sapatos, entretanto, a partir dos meus olhos. Portanto, a empatia é eivada de uma intenção legítima de considerar o outro e sua realidade, todavia, não permite o acesso efetivo ao outro já que o EU se impõe. Sendo assim, empatia nada mais é do que se comover consigo mesmo. No entanto, acredito que essa seja a forma mais honesta de se relacionar com aqueles que não são tão próximos, afinal não é possível saber das histórias, limitações ou mesmo da realidade daquele que não conhecemos.

E há pouco tempo venho observando uma terceira possibilidade e esta é, sem dúvida, a mais difícil porem a mais efetiva maneira de acessar o outro. Ela consiste em esvair-se, deixando de lado o EU para que haja só o outro. É evidente que se desprender completamente de si é algo impossível, mas o que interessa é saber que para entender o outro o que menos importa é o meu EU. As minhas concepções e minha forma de ver o mundo (WELTANSCHAUUNG é uma expressão em alemão muito usada na filosofia para descrever o que quero dizer) pouco importam na realidade alheia. Conseguir tirar o meu EU do foco faz com que o outro se torne visível, porque somente assim eu consigo deixar de me para ver quem eu quero entender. A grande diferença entre a empatia e essa terceira possibilidade é que para aquela é necessário se por no lugar do outro. Ora, para isso é importante haver algum elemento de conexão, enquanto aqui cabe apenas a observação não sendo necessário um reconhecimento.

E cheguei nesta conclusão ao ver como meu filho se relaciona comigo e com as pessoas próximas. A criança possui a característica comum aos melhores cientistas: a observação. Ela observa não só o mundo a sua volta como também as pessoas e seus comportamentos. Ainda que ela não entenda o que é a morte, ela tem noção da relação de total dependência entre ela e os adultos. E entendê-los se torna uma questão de sobrevivência.

É no observar e entender a dinâmica de seu cuidador que a criança consegue obter o que é necessário para si. Não é à toa que as pessoas costumam dizer que os filhos se comportam diferente na presença da mãe. Ela, que costuma exercer a função de cuidador principal, torna-se o elo entre a criança e o mundo, por isso, entendê-la é vital para a sobrevivência da criança. Portanto, o filho passa a se relacionar com sua mãe da mesma forma que ela se relaciona com o mundo quando está diante dela. Ou seja, para a mãe fica fácil se reconhecer na criança, ainda que esse movimento seja inconsciente. E por existir essa conexão, há um convite para que a mãe empatize com o filho, no entanto, esse reconhecimento pode ficar restrito à criança que ela foi um dia sem se conseguir enxergar o indivíduo que se mostra na figura de filho.

Vários foram os momentos em que eu me peguei perplexa observando meu filho como se me visse num reflexo. Quantas vezes passei a entender melhor a dinâmica do meu marido ao observar pai e filho juntos. "Num retrato falado, eu, fichado e exposto em diagnóstico (...) Numa moldura clara e simples sou aquilo que se vê"[1]. É assim que me sinto perante meu filho: decodificada. É só observá-lo comigo para se ter uma leitura clara e límpida de quem eu sou.

E essa leitura é possível para as crianças porque, além de não estarem impregnadas de preceitos morais, elas conseguem deixar de lado o próprio self para ver o outro. Entender o outro neste caso é vital. E para nós, adultos, é fundamental que entendamos esse comportamento, sob pena de sacrificar o self da criança em troca de compreensão e reconhecimento. Porque esvair-se, desprender-se de si pode significar o sacrifício de se perder, de passar a incorporar o outro e assumir um falso self.

Uma coisa curiosa é que no alemão a palavra alteridade é "anderssein", que por sua vez pode ser traduzida por "ser o outro". Perceba, não é se colocar no lugar do outro e sim sê-lo. 

Essa é mais uma das coisas que venho aprendendo com meu filho. Muito mais do que exercer a empatia, a minha tentativa é entendê-lo para além de mim. É tentar enxergar o que ele realmente precisa quando me interpreta sob meus olhos. É poder respeitar e acolher o que ele realmente é nas suas mais diversas facetas.

Contudo, ainda que todas essas conclusões possam não passar de meros devaneios, tenho a certeza de que meu filho foi a pessoa que me fez olhar para dentro de mim, que tirou-me dos olhos um venda que insistia em me cegar diante de mim mesma e do meu verdadeiro eu.




[1] Letra da música Retrato para Iaiá de Rodrigo Amarante.

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