segunda-feira, 30 de março de 2015

Da autonomia e protagonismo da mulher: repensando conceitos

Foto de Renata Penna - Projeto Bonita é Mãe
(http://bonitaeamae.tumblr.com/)
Na semana passada postei um texto que buscava demonstrar a importância do feminismo para o movimento da humanização do parto. Contudo, alguns debates me fizeram mudar de ideia em relação a esta frase:

Até por isso, uma cirurgia cesárea pode ocorrer de forma muito respeitosa, mas nunca será humanizada, visto que o sujeito ativo da cirurgia é o médico, sendo dele o protagonismo pelo ato.


O primeiro debate que me chamou atenção para o equívoco desta frase, surgiu de uma postagem da Dra. Melania Amorim em que defendia que poderia haver atendimento humanizado em uma cesárea.

A partir dessa discussão, pedi ajuda às amigas ativistas para entender como isso era possível e o que obtive foi uma troca de ideias bastante rica que acabou por me fazer reconsiderar a frase acima. Disseram até que o assunto era tão vasto que pesquisar sobre a humanização poderia levar anos! Alguns dias depois, e o post está feito. Então, a pesquisa foi superficial, mas nem por isso, o texto ficou curto. O assunto é bem complexo e, por isso, peço aqui paciência e tempo pra chegar até o final :-P .

Primeiramente, é importante frisar que o conceito de humanização da saúde e humanização do parto são conceitos distintos, embora este tenha se originado daquele. Ainda, o movimento da humanização da saúde já tem uma longa história e é bastante conhecido dos profissionais da saúde.

Neste debate, foi-me sugerido a leitura de um estudo sobre a humanização da saúde, que pode ser lido da íntegra aqui. E alguns trechos considero importantes serem destacados:
  
"DESLANDES (2004), em um estudo que analisa o discurso do Ministério da Saúde sobre a proposta de humanização na assistência à saúde, em nosso meio, destaca que o termo humanização, como tem sido empregado, carece de uma definição mais clara e tem significado um amplo conjunto de iniciativas que abrange:
- A assistência que valoriza a qualidade do cuidado do ponto de vista técnico;
- O reconhecimento dos direitos, da subjetividade e da cultura do paciente;
- O valor do profissional da saúde.
Portanto, as ideias centrais de humanização do atendimento na saúde são as de: oposição à violência, compreendida como a negação do outro, em sua humanidade, necessidade de oferta de atendimento de qualidade, articulação dos avanços tecnológicos com acolhimento, melhorias nas condições de trabalho do profissional e ampliação do processo de comunicação."

(...)

"MINAYO (2004) analisa o mesmo texto de Deslandes recordando a história das correntes filosóficas humanistas e esclarecendo que o humanismo laico e o cristão possuem três aspectos fundamentais que devem ser levados em consideração quando se discute humanização em saúde:
1) A centralidade do sujeito em intersubjetividade. Neste caso, o profissional de saúde deve reconhecer o outro em sua humanidade, ou seja, indivíduo com capacidade de pensar, agir, interagir, ter lógica, manifestar-se e expressar intencionalidade.
2) O ser humano como síntese de seus atos. Observa que o processo de humanização transcende os esquemas, funcionalista e mecanicista, que são traçados para “racionalizar sua implantação”. O existencialismo prega que um projeto só “é” ou “está em ação” quando envolve vários sujeitos, nos quais se acredita e se leva em conta “suas verdades em ação.”
3) O modelo médico continua sendo de formação tecnicista e instrumental. Nele, a formação dos profissionais da saúde supervaloriza o positivismo e as teorias mecanicistas que tratam o ser doente como organismo formado por um dispositivo bioquímico e funcional. No fundo, percebe-se, por parte do profissional, um menosprezo pela liberdade e autodeterminação do paciente."


Pela leitura destes trechos, pode-se inferir que por humanização da saúde se entende um modelo de atendimento mais focado na subjetividade do paciente e menos em teorias mecanicistas. O termo humanizar se aplica a um conjunto de práticas em saúde (e reflexões acerca dessas práticas) que se propõe a fazer frente a uma assistência mecanizada e automatizada. Quem se interessar sobre humanização na área da saúde, recomendo muito a leitura completa do arquivo linkado acima. 

Esses princípios também estão presentes na definição de humanização do parto, contudo, este conceito é mais específico.

A Dra. Melania Amorim conceitua a humanização do parto da seguinte maneira:

"Humanização do parto consiste em um tripé: a retomada do protagonismo feminino no PARTO (e por isso não se fala na cesárea, que nem é parto nem tem protagonismo), a visão do parto como um evento de múltiplas dimensões biopsicossociais e espirituais (não como ato médico) que deve ser atendido pela equipe transdisciplinar, e uma sólida vinculação com a medicina baseada em evidências."

Neste mesmo sentido, é a definição encontrada na página 112 do caderno do HumanizaSUS, disponível aqui:

Esse modelo pretende oferecer interlocução criativa entre paradigmas conflitantes. Se o “naturalismo” nos aprisiona nos ditames inexoráveis de uma natureza imprevisível, a “tecnocracia” também nos encarcera sob o domínio de uma tecnologia despersonalizante, coisificante e objetualizante, que se opõe às aspirações humanas de liberdade e autonomia. Portanto, a humanização do nascimento apresenta proposta baseada nesse tripé conceitual:
1. Protagonismo restituído à mulher, como premissa fundamental, sem o qual se estaria apenas “sofisticando a tutela” milenarmente imposta pelo patriarcado.
2. Visão integrativa e interdisciplinar do parto, retirando deste o caráter de “processo biológico” e alçando-o ao patamar de “evento humano”, onde aspectos emocionais, fisiológicos, sociais, culturais e espirituais são igualmente valorizados, e suas específicas necessidades atendidas.
3. Vinculação visceral com a Medicina Baseada em Evidências, deixando claro que o movimento de “Humanização do Nascimento” é fundamentado na razão e na pesquisa científica, e não em crenças religiosas, ideias místicas ou pressupostos fantasiosos.


Antes de tudo, uma grande diferenciação entre esses conceitos é que a humanização do parto trabalha com um evento fisiológico, ou seja, a princípio não é um ato médico. Sendo assim, ainda mais importante desvincular o atendimento de procedimentos tecnicistas e mecânicos. 

Essa preocupação em relação ao respeito do protagonismo da mulher está diretamente relacionada com a questão de gênero. A experiência do parto, ou mesmo da cesariana, só pode ser vivenciada por mulheres*. E, em razão da sociedade patriarcal a qual estamos inseridos, muito do machismo é refletido na assistência ao parto. Ou seja, a mulher é subjugada e sua vontade desconsiderada. Não é à toa que o sistema obstétrico, de um modo em geral, costuma ser muito violento. Portanto, em vista dessa realidade, outros princípios também devem ser considerados para que se possa nomear a assistência ao parto de humanizada, como o respeito à autonomia e ao protagonismo da mulher.

Isto posto, é de fundamental importância a reflexão sobre o que é autonomia e protagonismo feminino.
Dra. Bernadete Bousada respeitando o tempo da gestante e do bebê

Autonomia no contexto da assistência humanizada ao parto pode ser compreendida como a capacidade de decidir livremente, de realizar escolhas sobre o seu próprio corpo e a sua sexualidade nas variadas dimensões e resultados em que o parto pode se dar. Nesse sentido, protagonismo pode ser compreendido como o exercício da autonomia.

Portanto, sendo o protagonismo um exercício da autonomia que é a capacidade de escolher livremente, todas as escolhas devem ser respeitadas. Inclusive a escolha por não parir. É importante frisar aqui que autonomia é uma palavra radical, ou seja, ela não é mediada ou negociada. Muitos profissionais fazem crer que a escolha pela cesárea partiu da mulher quando, na verdade, ela baseou a sua decisão em informações falsas prestadas por eles. Infelizmente, isso é bem comum. Portanto, quando falo em respeito a escolhas, estou falando de escolhas legítimas e não viciadas em informações falsas, ainda que seja preciso debater essa manipulação impingida por profissionais de saúde.

Portanto, o exercício da autonomia pode ser feito, inclusive, de forma que precarize nossas vidas. Fumar, por exemplo, é uma escolha. E as pessoas a fazem mesmo sabendo de todos os males que esse hábito pode causar. Então, autonomia e protagonismos podem antagonizar com bandeiras da humanização do parto**.

Uma cesárea eletiva pode ser realizada de forma autônoma e protagonizada? Não podemos negar que há mulheres com acesso a informação e a profissionais de saúde qualificados, independentes, a par dos debates de humanização, que circulam em espaços de militância e que, ainda assim escolhem por uma cesárea mesmo no início da gravidez, sem qualquer indicação para tal. Essa escolha pode ocorrer por motivos subjetivos – preparar-se para o parto exige uma disponibilidade***, ainda que mínima, e nem toda mulher está disposta a isso. Parto pode ser intenso e mexe com muita coisa – no plano sentimental, espiritual, psicológico, inconsciente ou mesmo pode evocar um passado. Além disso, considerando a realidade do sistema obstétrico em que a violência obstétrica de tão normalizada é normatizada, a escolha pela cesárea eletiva pode ser considerada até uma fuga legítima. Ou seja, a escolha pela cesárea nem sempre representa uma abdicação pela autonomia e protagonismo.

E é nesse ponto que o conceito de sujeito ativo ou passivo se perde. Porque, nestes casos, se há verdadeira escolha, existe também autonomia e protagonismo e, deste modo, não posso falar em passividade na relação. Posso, até mesmo, estender esse debate para a questão do empoderamento para parir. Há mulheres que escolhem se empoderar em outras áreas da vida (seja no trabalho, seja em alguma militância, etc) e não estão dispostas a se encher de poder para parir. É uma escolha, e é legítima.

Imperioso lembrar que estamos falando de nascimento, de vida e, neste âmbito, independentemente de qualquer tomada de decisão, há riscos e se há riscos não há garantia de resultados. Ora, precisamos falar que a assistência humanizada ao parto inclui casos de óbito fetal. Se há gestação, há risco de aborto espontâneo em qualquer fase, então, também é preciso inserir no debate a assistência humanizada à mulher em situação de abortamento.

Ainda, é importante ressaltar que mesmo em gestações saudáveis e tranquilas a cesárea pode ser necessária. A própria OMS recomenda que 15% de cesáreas é um número que representa as gestações que têm que ser interrompidas via cirurgia. Portanto, uma assistência humanizada não pode estar atrelada ao resultado, visto que assistência é processo e não o fim em si. Este processo pode se iniciar nas consultas de pré-natal ou mesmo no início do trabalho de parto, ou seja, o atendimento humanizado antecede o resultado. Sendo assim, negar a humanização do parto, ainda que não haja parto, significa negar o processo em razão do resultado. 

Portanto, em se falando de respeito à autonomia e protagonismo feminino, não pode existir um pacote de procedimentos que caracterizem a humanização do parto. Humanizar o parto é respeitar subjetividades, de forma a se comprometer com todo o processo de nascimento. E, dentro desta reflexão, entendendo que o que deve ser priorizado é o processo e não o fim, não seria mais correto o uso do termo “humanização do nascimento” no lugar de “humanização do parto”?


Este debate pode parecer à primeira vista superficial na medida em que se questiona conceitos, contudo, há muitas implicações práticas:

1.    Sim, é possível o atendimento humanizado mesmo em se tratando de cirurgia cesárea. Aceitar isso é entender que o conceito da humanização da saúde é muito mais abrangente daquele da humanização do parto. É respeitar todo o histórico de luta dos profissionais da saúde que trabalham pela humanização. No entanto, falar em atendimento humanizado na cesárea não é o mesmo que cesárea humanizada. Sendo a cesárea um ato médico e também por ser uma cirurgia é importante que as evidências científicas e a boa técnica sejam observadas. Portanto, a cesárea em si não pode ser humanizada, mas a assistência ao nascimento que culmine numa cesárea, principalmente antes e após a cirurgia, podem ser humanizados.

2.    Receber um atendimento que respeite sua subjetividade durante a gestação e trabalho de parto pode ser fundamental para o exercício da maternagem, para o sucesso no aleitamento materno, principalmente, na fase puerperal.

3.    Entender o trabalho de parto e sua assistência como um processo que pode não acabar com o resultado desejado, também nos livra da sensação de fracasso. E, se isso porventura aconteceu com você, indico muito a leitura desse texto, que considero uma das coisas mais lindas que já li no espaço virtual.

4.   Ainda que se escolha por uma cesárea, conceitos da humanização do parto podem ser estendidos para o atendimento pós nascimento, dispensando intervenção desnecessárias no bebê e estimulando o contato e a formação de vínculo entre mãe e bebê.

5.   Refletir sobre essas questões e sobre a escolha da assistência a ser prestada auxilia na garantia do exercício da nossa autonomia. Porque não adianta escapar da tutela do cesarista para ser tutelada por profissionais que se intitulem  “humanizados” mas que em realidade não respeitam a autonomia e o protagonismo feminino.


*Esse texto é reflexo de um lugar de fala de mulheres cisgêneras, portanto limitado pela experiência do privilégio. Apesar de estarmos falando aqui exclusivamente de mulheres cis, entendemos que é importante avançar numa reflexão transfeministas - em outros países em especial no Canadá tem crescido a participação de pessoas trans no debate sobre assistência ao parto e aleitamento.

** Respeitar a escolha pela cesárea não significa desconhecer ou desconsiderar o fato que a cirurgia é mais arriscada tanto para mãe quanto para o bebê. E, além do risco, priva os dois de gozarem dos benefícios de um parto natural.

***Especialmente em um contexto em que a violência obstétrica é presente e há possibilidade, ainda que seja privilégios, de optar por parto domiciliar, hospitalar ou em casa de parto.

Este texto foi escrito em parceria com a grande amiga Xênia Mello. E ainda contou com a participação da Ana Rossato, Bruna Betoli, Mariana Elis, Helenice Assis Vespasiano, Laura Silva, Stella Siqueira Campos e Lidi Berriel (sempre tão necessária nas minhas reflexões sobre o movimento da humanização e sobre violência obstétrica).

Agradeço à Dra. Melania Amorim por fomentar o debate. Para quem não a conhece, ela é uma obstetra ativista pela humanização do parto. E como se isso não bastasse, ainda escreve esse blog que é recheado de informações sobre gestação e parto, e quando a gente não entende, ela desenha aqui.

Nenhum comentário:

Postar um comentário